30 de setembro de 2013

Casa Arrumada

(Foto: Duda Bastos - Agosto 2013)

Casa arrumada é assim: Um lugar organizado, limpo, com espaço livre pra circulação e uma boa entrada de luz.

Mas casa, pra mim, tem que ser casa e não centro cirúrgico, um cenário de novela. Tem gente que gasta muito tempo limpando, esterilizando, ajeitando os móveis, afofando as almofadas... Não, eu prefiro viver numa casa onde eu bato o olho e percebo logo: Aqui tem vida...

Casa com vida, pra mim, é aquela em que os livros saem das prateleiras e os enfeites brincam de trocar de lugar. Casa com vida tem fogão gasto pelo uso, pelo abuso das refeições fartas, que chamam todo mundo pra mesa da cozinha. Sofá sem mancha? Tapete sem fio puxado? Mesa sem marca de copo? Tá na cara que é casa sem festa. E se o piso não tem arranhão, é porque ali ninguém dança.

Casa com vida, pra mim, tem banheiro com vapor perfumado no meio da tarde. Tem gaveta de entulho, daquelas que a gente guarda barbante, passaporte e vela de aniversário, tudo junto...

Casa com vida é aquela em que a gente entra e se sente bem-vinda. A que está sempre pronta pros amigos, filhos... Netos, pros vizinhos... E nos quartos, se possível, tem lençóis revirados por gente que brinca ou namora a qualquer hora do dia.

Arrume a casa todos os dias... Mas arrume de um jeito que lhe sobre tempo para viver nela... E reconhecer nela o seu lugar.

(Carlos Drummond de Andrade)

Poema do Menino Jesus

(Foto: Rosana Pereira - Setembro 2013)

Num meio-dia de fim de Primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.

Depois fugiu para o Sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.

Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Que levam as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as cores que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos os dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos às cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um perigo muito grande
Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
E ele sorri porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios

Depois ele adormece e eu
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o na minha cama,
despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate palmas sozinho
Sorrindo para o meu sonho.

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
E deita-me na tua cama.
Despe o meu ser cansado e humano
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar.

(Alberto Caeiro)


- Bethânia interpreta esse poema como ninguém! DVD Maricotinha - Assistam!

19 de setembro de 2013

Artesanato

(Foto: Rosana Pereira/ Mutirão de Cantigas Dércio Marques 2012)

Vou lhe dar um anel de pedra preta
E olhar pra sempre seu dedo
Claro, claro, claro
Lindo

Amarrar um pulseira de prata
E deixar solto em seu pulso
Solta, clara, prata
Bela

Três colares de contas coloridas
Entre coração e colo
Contas redondas soltas
Bonitas

Colocar um par de brincos brancos
Em minha orelha negra
E outro par da mesma cor
Na sua, meu amor

Vestir assim seu corpo e o meu
A vida inteira
Seu olho verde
Sua pulseira
Meu cabelo marrom
Meu anel
A vida inteira
Nosso beijo

(Rubens Nogueira e Consuelo de Paula)


- Saudaaaades Consuelo querida! <3


16 de setembro de 2013


"Não sei se ando perdido
Só sei que sempre cantei
O verso sendo a espada
E o amor a minha lei..." 
 
(Carlos Pita)
 
- Saudade, saudade, saudade...

Cantiga Beiradeira


Vento e cais, tantos ais
Te vais rumo a sorte
Remo e morte
Uma só embarcação
 
Tua evocação,
Tanta terra, ar .
 
A palavra segue só
E vai dar num outro verso
Alguma prosa, alguma rosa.
Te espera,
Na janela, uma seresta.
 
Logo segue montada em harmonia
Lugares onde o silêncio clama
Tua ausência

Tanto riso, tanta vida,
Vira moda, história de cada lugar.
De todo tempo que ‘inda há de vir

Cantiga beiradeira
Beira sonho, beira rio.
Sem eira, nem beira.
Sem eira, nem beira ê
Cantiga beiradeira, eira,beira
Vento e cais, vento e cais.

Tantos ais te vais
E rumo a sorte
Remo e mote
Remo e mote
Uma só embarcação
Tua evocação
Água, terra, fogo, ar.
A palavra segue só
E vai dar num outro verso
Alguma prosa
Alguma rosa
Que te espera na janela

Uma seresta
Te espera na janela

 
A palavra segue montada em harmonia,
Terra, água, fogo, ar.
Te vais rumo a sorte
Remo e mote
Uma só embarcação
Tua evocação
A palavra segue montada em harmonia,
E te espera na janela,
Na janela


(Kátya Teixeira e Juh Vieira)

 



 

13 de setembro de 2013


Suburbano coração


Quem vem lá
Que horas são
Isso não são horas, que horas são
É você, é o ladrão
Isso não são horas, que horas são
Quem vem lá
Blim Blem Blão
Isso não são horas, que horas são

A casa está bonita
A dona está demais
A última visita 
Quanto tempo faz
Balançam os cabides
Lustres se acenderão
O amor vai por os pés 
No conjugado coração
Será que amor se sente em casa
Vai se sentar no chão
Será que vai deixar cair
A brasa no tapete coração

Quando aumentar a fita
As línguas vão falar
Que a dona tem visita
E nunca vai casar
Se enroscam persianas
Louças se partirão
O amor está tocando
O suburbano coração
Será que amor não tem programa
Ou ama com paixão
Mulher virando no sofá
Sofá virando cama coração
O amor já vai embora
Ou perde a condução
Será que não repara
A desarrumação
Que tanta cerimônia
Se a dona já não tem
Vergonha do seu coração

(Chico Buarque)

12 de setembro de 2013

Relicário


Assumi o hábito
De perambular por aí
Como velhos menestréis medievais
Penso que encontro a paz
No caminhar eterno,
Em encontros e despedidas.
Para manutenção
De minhas raízes
Guardo uma arca no peito,
Repleta
De amuletos e memória.
Acervo que não me deixa
Sentir solidão nos trilhos...

Levo montanhas de Minas;
Vozes do passado;
Ritmos e toadas antigas.
Tudo dobrado
Nos cantos da memória.
Carrego também
Rostos e risos amigos
Que me amparam
Quando da saudade
E sede de minha gente.

Formas e cheiros de mulheres
Também tem seu lugar na bagagem.
Antigos amores
Povoam garganta e coração;
Por isso insisto em cantar.
Guardo algumas teorias
Que ajudam a lecionar,
O amor pela pesquisa,
Pelas árvores
E o eterno respeito
Pelos ypês amarelos.
É assim que consigo ser itinerante.
A itinerância aprendi com os "Santos Reis";
Com eles também aprendi
A tocar esperança com o nosso povo simples.

São ícones de meu relicário vivencial...
Sacramento de que sou e existo!

(Giovanni Guimarães)

Ser poeta


"Pra gente aqui ser poeta
Não precisa professor.
Basta vê no mês de maio
Um poema em cada gaio
Um verso em cada fulô."

(Patativa do Assaré)

- De volta com blog quase novo!